Há quase dez anos, tramitam no Congresso Nacional dois projetos polêmicos: o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas. Ambos podem ir à votação definitiva a qualquer momento e estão inscritos no espectro da chamada ação afirmativa, políticas que pretendem privilegiar determinados grupos sociais prejudicados no decorrer da história. No caso do Brasil, os defensores dessas políticas visam sobretudo compensar os negros pela chaga da escravidão. O sistema de cotas, que facilita o acesso dos beneficiados às universidades públicas, é apenas a mais conhecida das medidas propostas. Caso realmente virem lei, os dois projetos estabelecerão uma divisão oficial na população apoiada num critério frágil e superado: a raça. Seria algo inédito no país desde o fim da escravidão. Entenda melhor a polêmica.
1. Quais as principais proposições do Estatuto da Igualdade Racial e da Lei de Cotas?
Caso os dois projetos de lei sejam aprovados no Congresso Nacional, metade das vagas nas universidades federais terá de ser preenchida por negros. O mérito acadêmico fica em segundo plano. Também haverá cotas para negros no funcionalismo público, nas empresas privadas e até nas propagandas da TV. As certidões de nascimento, prontuários médicos e carteiras do INSS terão de informar a raça do portador. Ao matricularem os filhos na escola, os pais terão de informar se eles são negros, brancos ou pardos.
2. Há previsão para a votação definitiva dos projetos no Congresso?
Não, mas há fortes pressões por parte de militantes para que a votação finalmente ocorra. O tema pode também ganhar fôlego por parte do próprio governo, pois era um dos compromissos de campanha do então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. O projeto de cotas foi originalmente apresentado no Congresso em 1999; já o Estatuto de Igualdade Racial, no ano seguinte. Desde então, eles têm recebido duras críticas dos mais variados setores, que apontam suas falhas e riscos – caso aprovados. Essas são provas de que há muita divergência sobre o assunto.
3. As medidas propostas pelos projetos são legais aos olhos da Constituição?
A Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial são monstruosidades jurídicas que atropelam a Constituição – ao tratar negros e brancos de forma desigual – e oficializam o racismo. Vale lembrar que não existe sequer uma lei brasileira que estabeleça ou estimule a distinção entre pessoas devido à cor da pele. A discriminação existe no dia-a-dia e precisa ser combatida: porém, se ambas as leis entrarem em vigor, estaremos construindo legalmente um país dividido. Além disso, apoiar-se no critério de raça é um disparate científico: segundo os cientistas, os genes que determinam a cor da pele de uma pessoa são uma parte ínfima do conjunto genético humano – apenas seis dos quase 30.000 que possuímos.
4. Quais os riscos de classificar pessoas por critério racial?
Ao exigir, por exemplo, que certidões de nascimento, prontuários médicos e outros documentos oficiais informem a raça de seu portador, o Estatuto da Igualdade Racial está na verdade desprezando uma longa tradição de mistura e convivência em prol de categorias raciais estanques. É, na prática, um exercício de discriminação racial, sancionado pelo estado. Em todas as partes onde isso foi tentado, mesmo com as mais sólidas justificativas, deu em desastre. Os piores são as loucuras nazistas e as do apartheid na África do Sul. Ambas causaram tormentos sociais terríveis com a criação de campos de concentração e guetos. Os nazistas exterminaram milhões de pessoas, principalmente judeus, em nome da purificação da raça. Como os seres humanos e a maioria dos animais baseiam suas escolhas sexuais na aparência, a raça firmou-se ao longo da evolução e da história cultural do homem como um poderoso conceito. Em termos cosméticos sempre será assim, mas tentar explicar as diferenças intelectuais, de temperamento ou de reações emocionais pelas diferenças raciais é não apenas estúpido como perigoso.
5. Afinal, de acordo com a ciência, o que são raças?
Biologicamente as raças são chamadas de subespécies e definidas como grupos de pessoas – ou animais – que são fisiológica e geneticamente distintos de outros grupos. São da mesma raça os indivíduos que podem cruzar entre si e produzir descendentes férteis. Esse é o conceito científico assentado há décadas. Recentemente, porém, esse ele foi refinado. Pode haver mais variação genética entre pessoas de uma mesma raça do que entre indivíduos de raças diferentes. Isso significa que um sueco loiro pode ser, no íntimo de seus cromossomos, mais distinto de outro sueco loiro do que de um negro africano. Em resumo, a genética descobriu que raça não existe abaixo da superfície cosmética que define a cor da pele, a textura do cabelo, o formato do crânio, do nariz e dos olhos.
6. Num país dividido entre "brancos" e "negros" pela lei, como seriam tratados os mestiços?
Essa é outra questão polêmica. Sendo os filhos das miscigenação, definidos como "pardos", descendentes em geral de africanos e de europeus, impõem-se uma questão importante: por que eles deveriam ser considerados apenas "negros"? Os projetos de lei não prevêem lugar para eles que não o "preto" ou "branco". Além disso, é preciso lembrar que os sistemas de cotas pretendem beneficiar apenas aqueles identificados como "negros". Pardos e negros, somados, representam, sim, a maioria dos pobres brasileiros. Mas o contingente de brancos pobres também é enorme. Como justificar uma política de avanço "racial" que deixaria para trás a massa de brancos pobres?
7. No Brasil, quem definiria a raça de cada indivíduo?
Esse é outro ponto polêmico dos projetos: como definir quem é branco e quem é negro numa sociedade miscigenada e multirracial como a brasileira? Uma pesquisa de geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais concluiu que 60% dos brasileiros que se declaram brancos têm alguma ascendência indígena ou africana. Cientistas brasileiros encontraram em São Paulo indivíduos de fenótipo negro sem marcas genéticas africanas. Encontraram também o inverso. Na Universidade de Brasília (UnB), que já adota cotas para negros, esse dilema foi enfrentado com uma solução de dar arrepios – um tribunal racial. Os "juízes", diante de fotografias dos candidatos, davam a sentença.
8. Qual a inspiração das ações afirmativas no Brasil?
O principal modelo são os Estados Unidos. Lá, uma secular história de discriminação dos negros foi amenizada pela integração forçada nas escolas e nos locais de trabalho. Havia estados em que o casamento inter-racional era proibido. As chamadas ações afirmativas foram instituídas na década de 1960 pelo presidente John Kennedy, num momento em que o país vivenciava o auge de seus conflitos raciais. Determinou-se, na ocasião, que firmas e universidades deveriam reservar cotas ou abrir vagas de forma proporcional ao peso dos negros no total da população americana, cuja fatia é de 12%. A penalidade para os que desrespeitam essa regra era a dificuldade de realizar qualquer negócio com o governo. Outra inspiração veio da África do Sul. Após décadas de turbulência e esfacelamento da sociedade devido ao regime de segregação do apartheid, instituído em 1948, o governo tentou incluir os negros na sociedade branca com um conjunto de "ações afirmativas". Entre elas estava a reserva de cotas para negros em cargos do funcionalismo público e na universidades do país. Há ainda o caso da Índia, onde as cotas foram implantadas há mais de 50 anos para beneficiar os dalits, conhecidos como "intocáveis".
9. As ações foram bem-sucedidas nesses países?
O economista americano Thomas Sowell, pesquisador de políticas públicas da Universidade Stanford e negro, escreveu o livro Ação Afirmativa ao Redor do Mundo, no qual conclui que essas políticas fracassaram em todos os países onde foram adotadas. Aumentou um pouco a inserção dos negros, apenas um pouco, e a um custo desastroso. Nos Estados Unidos, onde as cotas raciais começaram a ser banidas em 1978, houve prejuízos às universidades e empresas sem que a situação socioeconômica dos negros fosse alterada sensivelmente. Desde 1978, por decisão da Suprema Corte, elas são proibidas, seja em universidades, empregos públicos, seja em programas televisivos. Permite-se que haja políticas de incentivo à promoção dos negros, mas nada parecido com cotas raciais, pelo fato elementar de que são, obviamente, inconstitucionais. Na África do Sul, o resultado foi um desastre. A qualidade do serviço público despencou e o desemprego entre os negros subiu de 36% para 44%. Na Índia, as conseqüências foram ainda mais amargas. Numa única escola de medicina do estado de Gujarat, onde havia sete vagas destinadas aos dalits, 42 pessoas morreram num protesto contra as cotas.
10. Os negros estão realmente sub-representados nas universidades brasileiras?
Segundo o estudo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) de 2005, o número de negros nas universidades federais corresponde exatamente à sua participação na população brasileira, que é de 5,9% - o número não considera pardos. O economista Marcelo Néri, pesquisador do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, produziu, com exclusividade para VEJA, um estudo sobre a população universitária brasileira, de acordo com a raça. Usando dados do IBGE, Néri descobriu que, comparados a brancos e pardos, os negros são, de longe, o contingente que apresentou as maiores taxas de crescimento nas universidades públicas, entre 2001 e 2003. Nesse período, o número de estudantes negros de nível superior cresceu 55,1%, contra 14,9% a favor dos pardos e 10,4% para os brancos.
11. Quantas universidades já utilizam o sistema de cotas do Brasil?
Segundo levantamento feito pelo Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UeRJ), 51% das universidades estaduais e 42% das federais de todo o país adotaram até o fim de 2007 algum tipo de "ação afirmativa". Ao todo, eram 40 instituições públicas. Delas, 18 eram universidades estaduais (do universo de 35 mantidas por estados) e 22 federais, do universo de 53. As ações privilegiavam os negros e indígenas por meio de cotas ou de bonificação no vestibular.
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