"Quereis ser médico, meu filho? Esta é a aspiração de uma alma generosa, de um espírito ávido de ciência.
Tens pensado bem no que há de ser a tua vida?"

- Esculápio -

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Num casal, não há metade perfeita. E as diferenças são muito bem-vindas.

No diálogo O Banquete, do filósofo grego Platão (427-347 a.C.), vários pontos de vista sobre o amor são apresentados. Um dos participantes, o poeta cômico Aristófanes (cerca de 450-cerca de 388 a.C.), também grego, conta ali um mito comovente. Nos tempos primevos, haveria um terceiro gênero, nem homem, nem mulher, mas um ser completo, formado por duas metades. Este ser "era uma totalidade redonda, sua espádua e suas costas formando um círculo; tinha quatro braços, pernas em número igual ao dos braços, dois rostos sobre um pescoço circular, semelhantes em tudo, e sobre estes dois rostos que estavam colocados em sentido oposto somente uma cabeça; além disso, quatro orelhas, dois órgãos sexuais".
Havia três espécies do gênero: uma com as duas metades homem, outra com as duas metades mulher e uma terceira, com uma metade homem e a outra, mulher. Todas eram criaturas fortes, a ponto de poderem desafiar os deuses. Para enfraquecê-las, Zeus seccionou-as em duas partes. A partir de então, cada uma procura sua metade.
Aqui está colocada aquela ideia de uma destinação única e inelutável, comum em casais apaixonados e com pouca experiência em relações amorosas, a popular "metade da maçã", ou "cara-metade". Diz respeito àquele sentimento de perfeição experimentado pelo jovem casal, que acredita ser forte e capaz de enfrentar todos os desafios e de se entender perfeitamente, cada um adivinhando e realizando o desejo do outro, pois os dois se tornaram um. Nesse estágio as diferenças não são percebidas, escondem-se sob o manto do desejo de ser e fazer tudo aquilo que o outro deseja.
Sabemos que tal estado tem uma duração limitada. Amainada a fogueira da paixão, as diferenças começam a aparecer, as demandas deixam de ser tão prontamente atendidas, ou passam a ser desatendidas. Surge então a clássica frase "Somos muito diferentes", cujo subtexto é "Nossa relação não vai dar certo".
Alguns casais se separam durante este período tempestuoso e outros o atravessam aprendendo a conviver com a diferença, mas lamentando secretamente o paraíso perdido.
Pois bem: além de ser inevitável o aparecimento das diferenças, elas têm importantes funções. Havendo boa vontade para ouvir e levar em consideração os pontos de vista do parceiro, e havendo compreensão e tolerância para as suas idiossincrasias, mesmo que bobas, um poderá se enriquecer com as peculiaridades do outro.
A aceitação da diferença tem também função no delicado campo da atração sexual. Um casal que está descobrindo as diferenças, mas ainda não sabe lidar com elas, tende a ir se afastando até que surge uma briga séria. Esta reaproxima os parceiros no território da agressividade, seguindo-se então um período de amuo que incomoda os dois, especialmente quando as brasas da paixão ainda ardem. Aí, o desejo sexual, a serviço do desejo de reaproximação, cresce muito, levando a intenso encontro de corpos e almas. O prazer sentido e a fusão experimentada amolecem as defesas e ambos ficam mais propensos a se abrir e a admitir as diferenças. Eles se tornam mais porosos na relação, podendo aceitar a subjetividade do outro. Esse processo várias vezes repetido consolida a relação e é possível que chegue o momento em que o casal possa dizer: "Bendita diferença".
 * Nahman Armony, médico psicanalista, é membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (Spid), do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e da Federação Internacional das Sociedades Psicanalíticas. Publicou, entre outros livros, Borderline: Uma Outra Normalidade.

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